sábado, agosto 30, 2008

dormir na praia


(Livro de contos)


Do lado direito do peito tenho o mar. O lado esquerdo é teu.
As mãos estão paradas ao longo do corpo, vazias. O ruído de fundo que se ouve vem da praia, vem das rochas, a água salgada a bater e ser espuma que se desfaz em mil bolas minúsculas. A espuma é branca da cor do amor, como se o amor tivesse cor. Não tem. Dói. O amor dói. Arde na pele da mesma forma que o sol em brasa a queimar a pele quando durmo na praia. É uma febre vermelha. O amor com outra cor? Será?

Sol.
Vento.
Praia.

O vento está de sul, rondou esta noite. A madrugada foi de chuva, o vento sul trás a chuva. Pelas sete horas o nevoeiro estava à porta á janela, na varanda, na rua, a praia encoberta, as gaivotas pousadas viradas a sul. Na varanda a chuva cai do telhado em pingos grossos como lágrimas de dor. Aqui não há dor nem amor. O amor é mais logo quando o dia clarear, agora é neblina meio cinzenta meio branca, escurecida. Não quero o amor assim, sombrio, gosto de um amor com sol, solidário, presente, omnipresente.
Só tu não estás para a palavra ser verdadeira.
Aqui tudo é falso. Quero dizer.
Aqui tudo é imaginado, não real. Virtual. Essa a palavra. Virtual!

O amor é assim? Será assim virtual. Branco? Deve ser.

Há dias andava na praia como ando sempre a olhar o mar com olhos de não ver. Posso andar na praia assim de olhos fechados que sei onde está o mar.
Contigo é diferente, arregalo os olhos até doerem, luto com o sono, o peso das pálpebras como persianas velhas a caírem, venço e fico de olhos demasiado abertos. Só tu não estás. Por mais esforço que faça. Não te vejo. Não te sinto, nem na mão esquerda nem na mão direita, atrás ou á frente de mim.
Às vezes dormes ao meu lado, mas acho que fazes de propósito. Só pode. É quando vencido fecho os olhos e adormeço na praia até acordar assustado com o mar a lamber-me os pés com uma língua fria, húmida, a inundar-me num estado liquido, diria pastoso de areia fina e água salgada, às vezes também chegam farrapos de sargaços vencidos pelo mar de fundo vigoroso.

O mar tem fundo, não tem?
E o coração? Tem fundo? Fica fundo?

Gostava que me dissesses como é o coração. Podes dizer-me mesmo ao ouvido. Murmurar-me, sussurrar-me, soprar-me ao ouvido mentalmente como é o coração.
Fazes isso? Fico à espera.

Hoje vou adormecer outra vez na praia à espera que faças isso. À espera que venhas. À espera que chegues.

Dás-te conta?

A minha vida mais parece uma Gare Marítima onde me encontro sempre à espera. À TUA ESPERA! Espero-te ainda.

Vale a pena?

Sopras-me também ao ouvido se vale a pena esperar por ti a dizeres-me que não?
Fazes isso?

Matas-me não é!

Sempre desconfiei que tinha um coração fraco, um coração inundado pelo mar, um coração inútil.

Fazemos assim!

Morro de amor por ti. Afinal tenho um coração inútil.
Afinal estou parado sempre à espera. Qualquer lugar me serve. A tal Gare Marítima da minha infância. (Lembro-me da de Leça, também serve, mas nessa altura não existias). Um cruzamento de ruas. Uma paragem de autocarros laranja abrigada, dentro um banco corrido com duas pessoas sentadas. Eu espero do outro lado. A outra rua do cruzamento. A paragem é um tubo frio ao alto com uma placa de chapa numerada.
Chove. Hoje acordei com chuva e neblina, alguns trovões distantes faziam escutar-se no silêncio abafado da manhã. Voltaram agora do lado do mar, ouvem-se perfeitamente enquanto penso as palavras. Aguardo que se aproximem os relâmpagos. São traços de luz poderosa na noite.
A placa com números. Cada número é um autocarro laranja, podes vir em qualquer um deles. Por isso espero. Nunca vieste! Não andas de autocarro.
Desculpa-me!

Eu não sabia!

A Boavista tem uma rotunda enorme, larga. Atravessei-a a correr de forma obliqua. A fugir do sol.
Os ponteiros do relógio no pulso castigam-me. Condenam-me a esta existência de esperas. Vou atrás de ti. Vou de uma forma estranha. Vejo-me a ir nos vidros das montras reflectido, uma sombra? A rua por onde caminho a descer. Os pés não tocam o chão. Voo! Caminho como se andasse sobre a espuma no mar. Deslizo de uma forma obliqua ainda a fugir do sol, paralelo ao tempo. O tempo está nos ponteiros do relógio que me castiga.

Diz-me, mereço castigo?

Já não vou escrever mais a palavra AMO-TE. Fica proibida no meu dicionário, no meu léxico gramatical. Afinal tenho um coração fraco, que não te merece. Gostas dos corações fortes e eu não sou. Sou humano, cheio de defeitos. Fazemos assim: GOSTO DE TI. Ficas a saber. Concordas que substitua a palavra proibida agora por esta? Quando eu adormecer cansado na praia dá-me também essa resposta.

A rua agora sobe, reconheço-a por reconhecer ao fundo a janela da sala onde me despedi da mãe ligada às máquinas. O corpo a despedir-se, quase morto. Se tu soubesses…Viro para trás, mudo de rua. Detesto esta rua íngreme. Se aqui estivesse o mar no lado direito de mim podia caminhar de olhos fechados e passar a rua, olhar a janela da sala sem ver.
Chego à estação dos comboios com a sensação de estar atrasado. Compreendes porque me atrasei? Porque tive de mudar de rua. Conheço tão mal a tua cidade. Olho os comboios e espero que chegues. Espero. Vais chegar não vais? Espero que chegues no comboio rápido Lisboa – Porto. A tua cidade é o Porto. Verdade? Também não sei. Mas a minha não. Não tenho uma cidade minha. Tenho momentos meus em muitas cidades. É triste não é? Não te importes, eu não me importo já, estou habituado foi isso com toda a certeza que me tornou assim meio ausente, sempre à espera sem o saber. Por falar nisso. Na espera. Também não vieste em nenhum comboio rápido Lisboa Porto, esperei pelos outros todos também, gritei o teu nome, escrevi um grafitti na parede com o teu nome.

Não viste!

Depois. Não te disse que existe sempre um depois? E também não te disse que depois o depois é sempre diferente do imaginado. Eu imaginava que vinhas, que ias escutar o teu nome no altifalante, que ias ler o teu nome na parede, o grafitti assinado por mim, e depois me vias e sorrias e eras o sol, o meu sol. Foi tudo completamente diferente. Depois chegou a policia, tas a ver o depois. Levou-me, ali o criminoso era eu. O coração fraco a bater. A dado momento já não sei se chove por fora ou por dentro de mim. Depois. O depois diferente, tive de explicar tudo na esquadra e depois repetir ao juiz que compreendeu o meu coração fraco e humano a errar.
Que te esperava, que só gritei o teu nome no altifalante aflito, que só pintei o teu nome na parede como ultimo gesto desesperado da espera, porque os comboios já tinham chegado e partido todos, porque só os abandonados permaneciam na estação, a dormirem sob um monte de cartões velhos a esconder a vergonha. Neste momento estou atormentado, espero a condenação que tarda. Vou limpar a parede, apagar o teu nome de mim, e depois tenho umas quantas horas de serviço comunitário para fazer, eu não me importo, vou limpar todas as paragens dos autocarros da tua cidade. A ver se te encontro.

Porque te estás a rir?

Eu sei que as probabilidades são de um para um milhão de te encontrar. Tu não andas de autocarro. Mas não tive escolha. E se vens pela rua a caminhar? E se vens pela avenida a descer em direcção ao mar? E se vais até á ribeira a ver o rio? E se vens a conduzir o teu carro. Tens carro, não tens? (As coisas que me faltam saber de ti). Posso estar no dia um dos tais dias que fazem parte do milhão de dias e te encontro. Já tentei! Juro! Já tentei, estavas na tal paragem no cruzamento das ruas. Eram duas pessoas sentadas no banco à espera do autocarro laranja, uma eras tu. Só podias ser tu! Quando te vi e soube que eras tu, mandei parar os ponteiros do relógio no pulso. O tempo começou a deslizar muito lentamente. Eu disse-te que caminho sem tocar o chão? Quase a parar o tempo! Deitei fora o coração inútil por ser fraco, (esse o meu erro). Substitui a palavra em uso, GOSTO DE TI pela palavra proibida, AMO-TE (nunca me perdoaste o gesto), fechei os olhos para te manter cativa na memória e fui a correr.

Os olhos fechados na tua cidade.

Lembro-me.

Era um cruzamento, duas ruas, eu estava na paragem à tua espera e tu estavas também à espera, não de mim mas eu não sabia. Ainda não sabia.

Lembro-me

Atravessei a rua a correr os olhos fechados ainda, tu tão perto. O tempo a parar. A ter-mos tempo. A palavra substituída de novo no lugar certo, verdadeira. Tu tão perto.

Lembro-me

Estendia a mão esquerda aberta, o corpo inclinado para a frente quase a tocar-te, a mão direita também. Lembro-me perfeitamente do som dos travões, o ruído dos pneus na rua a chiarem, o cheiro a borracha queimada.
O tempo ainda parado como eu lhe tinha pedido. Os olhos fechados. O corpo a correr.

Lembro-me

O doce do sangue na boca. O movimento estranho a flutuar na espuma. O corpo a ficar.
Abri os olhos. Não eras tu na paragem era uma semelhança tua, já não vi bem. Tenho o coração fraco e tinha-o deitado fora. E sinto o frio do mar a inundar-me por dentro, os farrapos de sargaço a abraçar-me as pernas. Não sinto o relógio a bater no pulso. Não sinto o coração fraco a bater ainda por ti. Não sei se chove ou se é o meu lado direito do peito a inundar-me, não lhe sinto o sabor da água, ou a força do vento ou o calor do sol.

Lembro-me

Pensando bem eu vinha a correr de olhar fechado na tua cidade a pensar que era na praia e que eras tu sentada nas rochas à minha espera.
Pensando bem para que penso. Para que sinto?
O sol, descobri agora, é azul em relâmpagos intermitentes. O vento é um uivo ondulante na cidade. A chuva é amarga a arder nos olhos.
Os ponteiros do relógio desobedeceram e avançam sem ordem um pouco o tempo. O tempo desordenado. Sabes o que é isso? O tempo desordenado. Deixa. Não queiras saber como é.
Tarde. É tarde.
Sinto uns dedos em mim. Juro que nesse momento perdi o rumo, a direcção. Desnorteei-me. Sinto uns dedos em mim a abrirem-me as pálpebras. Eram uma espécie de prédios altos, esguios, brancos, as pessoas. Um ângulo completamente obliquo e diferente de todos os ângulos. Olharam-me! Está morto! Ouvi dizer. Fecham-me os olhos então, e eu como estava cansado deixo-me adormecer na praia, a mão esquerda estendida para te sentir.

Se quiseres

Se vieres



João marinheiro, excerto do Livro de contos, "Dormir na praia "
Praia de Fornelos 2008
Fotografia de Barcoantigo em 2008

segunda-feira, agosto 25, 2008

se eu pudesse refugiar a memória no escuro da noite...

quinta-feira, agosto 21, 2008

o coração todo teu...


Agora que sabes que te amo
O coração todo teu
Para lá do tempo

Envolves-te no manto do silêncio
Eu aqui na angustia da espera
Tardas

Envelheço nas curvas dos dias
Sem memória já
do teu corpo inalcançável
e fico adormecido

este amor
tão doloroso de ausente
como ausente sou sempre
das noticias tuas que tardam

a ausência esse lugar dos destroços
agora que sabes que te amo
o coração todo teu


João marinheiro 2008

sábado, agosto 16, 2008

Acordo 150 milhas a oeste de nada e o silêncio é sofucante
Abro os olhos no escuro total. O barco parado estático. Tacteio em direcção ao poço e ligo o motor, acento as luzes, carrego as baterias extenuadas, lentamente os instrumentos de bordo iluminam-se, lentamente os visores, os alarmes passam do vermelho ao laranja finalmente ao verde. 14 volts a carregarem as baterias.
35º de temperatura 80% de humidade a escorrer pela pele, irrespirável, o mar um caldeiro onde os meus pecados se expiam. O nevoeiro espesso a assustar
Penso em ti
Se tu me entendesses…
joão marinheiro 2008

sábado, agosto 02, 2008

breve história...


Éramos dois ao serão nas noites da memória, eu e tu, e uma gata persa triste.
Um dia foste embora e continuamos dois. Eu e a gata persa triste que entretanto morreu com saudades das tuas festas.
Ainda somos dois.
Eu e a memória tua nas noites agora longas e frias.
Nunca te disse da forma como te amava.
Ou como te amo agora que aprendi este amor novo em silêncio feito de esperas e de desejos como fogo frio a consumir-se por dentro.
Espero também partir e depois já não somos ninguém à tua espera.


João marinheiro 2008

Fotografia de Barcoantigo 2008