sábado, outubro 31, 2009

passeio nocturno a sul




Passo a deixar um rasto de palavras, como esteira de navio rápido sulcando águas rumo a sul. A cidade adormeceu embrulhada na luz amarelo pálido, os gatos vagueiam nas ruas velhas, sentem o odor do peixe, por vezes por entre as fitas caídas na porta das tabernas saem vozes emaranhadas no vinho ácido nas gargantas já. Os barcos bamboleiam no porto, não os vejo. Sinto-os a percorrerem-me a pele e sinto o nevoeiro frio a tolher-me os ossos. Dos olhos correm dois rios quase secos, na praia quase extinta dois pescadores tardios lançam a linha noite dentro. São dois, um fuma um cigarro, sinto-lhe o cheiro a tabaco abafado. Os meus pés agora caminham pela beira-mar, o corpo permanece adormecido na atalaia. Quatro centenas de gaivotas cinzentas, não mais acordam ao mesmo tempo e levantam voo aos gritos, esvoaçam por cima de mim e pousam mais atrás. Ainda lhes senti o arfar das penas como seda a rasgar-se na noite. A cidade não vai acordar tão cedo. Só os gatos vagueiam na calçada de ruas velhas, e algum bêbado tardio em busca da porta velha. O meu corpo permanece sentado nas pedras da índia a olhar a enseada tomada pela névoa. Imagino velas alvas e imponentes navios negros navegando no silêncio húmido. Sou eu que os imagino, um corpo sem pernas, umas pernas a caminharem na beira do mar, a areia fina. Pequenos detalhes para uns olhos cansados, quase dois rios secos. Nas margens brotam pequenas pétalas de flor de sal cheias de ternuras espalhando-se pelas rugas do rosto. Passaram 3 horas e eu sem sono vagueio, a cidade vai acordar no alvor da manhã, os gatos recolheram-se, a ultima taberna antiga com a idade da memória cerrou a velha porta, escutei as duas voltas do ferrolho metálico a entranhar-se na pedra. As fitas, não lhes distingo cor. Permanecem quietas como cabelos de sereias longos e negros. Não sei se as sereias têm cabelos, se são negros se ficam quietos, se algum dia ficaram pendurados a servir de fitas na porta de uma taberna. Ainda me faltam tantas respostas e tantos sonhos. O castelo tem as portas cerradas, ando à sua volta. Gama permanece altivo encostado à parede a olhar o mar, por um momento sinto um aperto no coração. O coração de Gama é um coração de bronze, ou o mais certo esqueceram-se de lhe fazer um coração de bronze, de o colocar por dentro do peito. Gama é uma estátua adormecida também…
As pernas voltaram da beira-mar, o corpo descansado reúne-se de novo levanto-me desço a escadaria velha tomo a estrada rumo a sul, quem sabe um dia chego a São Torpes.


João marinheiro, Inéditos 2009
Fotografia de Smith Fragata

segunda-feira, outubro 26, 2009

(livro de contos)


– Bom vou deixa-los porque tenho alguns afazeres ainda diz Filipe enquanto se levanta. A despesa é por minha conta. Prazer em o conhecer João Pedro, apareça um dia destes para dar-mos uma volta por Lisboa se quiser.
- Obrigado pode ser que aceite o seu convite, ainda vou estar por Lisboa mais uns dias antes de ir para Londres.
Olho Esmeralda nos olhos, está a sorrir, o seu rosto espelha alegria, os olhos são dois pontos brilhantes, duas pérolas luzidias que sobressaem aqui nesta esplanada tão concorrida, tão a transbordar de pessoas. Ou sou eu que me admiro com a sua serenidade o seu ar feliz. Esmeralda é uma mulher bonita que prende a atenção, simpática, sou tentado a querer conhece-la melhor, mas a minha timidez, não me deixa à vontade para lhe perguntar quem é, sei lá se não me vai achar uma pessoa demasiado curiosa ou intrometido.
Durante uns momentos, demasiado longos acho, estivemos calados, sinto que agora é Esmeralda que me observa, tenho outra vez aquela sensação de estar a ser observado.
- O João Pedro acredita em coincidências, ou nas partidas do destino?
- Não sei Esmeralda porque pergunta isso?
- Se lhe disser que já o conhecia. Acredita?
- A Esmeralda está a dizer que já me conhecia? De onde? Como pode ser possível?
- Partida do destino ou a tal coincidência João Pedro. Diz Esmeralda a sorrir enquanto solta uma pequena gargalhada. E não faça essa cara de incrédulo ok. Deixemo-nos de formalismos, eu não gosto de tratar os amigos por senhor, nem doutor nem comandante ok, tu, para mim és um amigo que quero descobri, conhecer melhor, afinal à mais de 5 anos que desapareceste e não sonhava encontrar-te de novo. Muito menos no hotel onde agora trabalho. Foi uma surpresa quando abriste a porta do quarto e te levei o jantar.
Mas de onde me conheces Esmeralda? Pergunto cheio de curiosidade.
Daqui de Lisboa mesmo, temos, ou tínhamos uma amiga comum, Laura, diz a sorrir enquanto me olha inquiridora, já estiveste com ela?
Sim estive, respondo, estive em casa dos seus pais a almoçar hoje, e estive com ela, ainda sinto o efeito do reencontro. É natural diz Esmeralda.
– Laura casou com um colega médico, vivem no norte, está de bebé, falei com ela ontem pelo telefone. Não lhe disse que te tinha encontrado aqui em Lisboa, foi a tal coincidência que te falei à pouco, hoje ela veio com o marido para um congresso de medicina e passou em casa dos pais e tu, por coincidência hoje foste visitar os seus pais e foste em sua busca. Partida do destino, hoje eu que estou de folga estava aqui com o Filipe e tu vinhas descendo a avenida meio perdido nesta cidade viva de movimento, ou não é verdade. Demasiadas coincidências.

- Conheço-te do tempo da Escola Náutica. Lembras o café onde paravas, onde ias com Laura, é dos meus pais, era porque já o venderam. Na altura estudava Relações Internacionais fazia o 2º ano da faculdade, Laura estava em medicina também no 2º ano, tu fazias a especialização. Cumprimentamo-nos duas ou três vezes só, durante esse ano. Depois quando foste embora, cheguei a falar com a Laura muito sobre ti.. Laura sofreu um bom bocado, foste demasiado duro e insensível com ela, acho que te amava, embora fossem só amigos. Nunca me disse mas notava-se o seu grande carinho por ti quando falávamos as duas.
- Imaginavas uma coisa assim. Uma partida do destino destas. Os dois aqui no Rossio a falar de um tempo à cinco anos atrás. As probalidades, uma num milhão de aqui estarmos, tu e uma desconhecida que sabe de ti, da tua passagem por Lisboa, do amor marinheiro deixado no porto a desaguar nas águas frias do Tejo. ..

( continua)




domingo, outubro 18, 2009

(livro de contos)


Apetece-me beber um copo. Lisboa é para mim uma cidade estranha hoje, sou um estrangeiro por cá, é isso. Lisboa é uma cidade bonita interessante para se desfrutar com uma companhia, para se partilhar. Dou-me conta que nos últimos anos tenho sido só, sem partilhar o tempo e as emoções. Desço a avenida em direcção ao Rossio, gosto de me sentar na esplanada da pastelaria que não lembro o nome, só a reconheço pela escultura de Pessoa o poeta. Espero que esteja ainda aberta, gosto de me sentar ali e observar o movimento das pessoas. Lisboa é uma confluência de culturas e de raças agora, já o era quando aqui estive a estudar, mas hoje são muito mais as pessoas que aqui deambulam, de raças diferentes, mais africanos, mais asiáticos, mais dos países de leste, é fácil de os reconhecer, pelas roupas, pelo tom de pele, pelos modos. Lisboa é uma cidade de contrastes.
A pastelaria está aberta, hoje o fim de tarde é esplêndido, quente e luminoso. A esplanada completamente cheia, nem uma mesa vaga, olho em volta, pareço meio perdido na névoa, é assim que me sinto por breves momentos. Apetece-me sentar-me em qualquer lado e descansar um pouco, sinto-me terrivelmente cansado. O almoço em casa dos pais de Laura, o reencontro com Laura ainda estão dentro de mim a fazer estragos, ou sou eu que ainda não tive tempo para clarear as ideias. Por breves momentos tenho a impressão que estou a ser observado. Uma sensação que sobe por dentro do estômago à garganta, uma espécie de pânico silencioso. Instintivamente busco com o olhar alguém ao redor. Debaixo de um guarda-sol acenam-me, acho que me acenam, um casal está sentado, dirijo-me para eles e reconheço Esmeralda, a funcionária do hotel onde estou hospedado.
- Sente-se aqui connosco Sr. comandante, a esplanada está cheia diz Esmeralda. Obrigado, aceito o vosso convite, estou cheio de sede e de calor, digo enquanto me sento ao lado do jovem que acompanha esmeralda e me apresento. Sou o João Pedro estou hospedado no hotel onde trabalha a menina esmeralda digo enquanto estendo a mão num comprimento.
– Olá João, sou o Filipe irmão da Esmeralda, a minha irmã disse-me quem era quando o viu descer a avenida. Olho Esmeralda neste repente, os seus olhos estão a observar-me, e sinto outra vez aquela sensação estranha de estar a ser observado sem saber de onde.
– Obrigado de novo Esmeralda pelo convite a partilhar a vossa mesa, a verdade é que não se arranja lugar a esta hora, e mesmo que alguma mesa estivesse vazia é sempre mais agradável estar aqui sentado com companhia. Lisboa é uma cidade para se desfrutar em companhia acho eu, mas posso estar enganado.
– É capaz de ter razão comandante, costuma-se dizer que Lisboa é uma cidade mágica, mas eu pessoalmente penso que a magia existe nas pessoas e não depende do lugar ou do momento, diz Esmeralda a rir.

(continua)