domingo, novembro 24, 2013

Cartas...



Não sei por onde começar

Gostava de te escrever uma carta. Sim, uma espécie de carta das viagens das idas e das vindas. Das partidas. Dos reencontros. Dos abraços. Das lagrimas. Dos lenços brancos enquanto o navio se afastava do cais e nos levava de encontro a Africa e á guerra.
Não consigo escrever-te uma carta.
Fomos tão breves os dois, tão breves que dói, e as pontas dos dedos dilaceram-se de encontros ao vazio que ficou.

 Gostava de poder tocar-te novamente. Afagar os teus cabelos e murmurar-te ao ouvido em ruídos de água na levada que és tão bonita. Olhar-te nos olhos outra vez e ver o amanhecer do sol sobre a montanha alva onde a neve brilha e o frio nos faz arrepiar a pele e onde o abraço tem um sentido quente de conforto.
Separa-nos uma linha invisível e a distância entre o tu e o eu. Existimos os dois por dentro da memória num lugar recôndito e secreto, onde o tempo não avançou e somos crianças de novo.

Ensinas-me a tabuada e eu ensino-te as palavras imaginadas, num jogo de apanha apanha, de toca e foge, e eu, sempre que te tocava, era uma corrente eléctrica que me atravessava. Pena que nesse tempo tudo era novo e a única luz nas trevas era a candeia de azeite a tremeluzir.
Ainda sinto o cheiro do azeite a arder e na pele o cheiro da madeira de carvalho a crepitar na lareira.

Faltam-me as memórias da tua seara, dos cachos dos teus cabelos loiros como espigas ondulantes, o som do teu sorriso, o contorno dos seios arrebitados ao vento que eu contemplava em contra luz quando sensual, tu, te entrepunhas entre o entardecer do sol e o meu olhar perdido. Nesse tempo existia a inocência em nós e todos os pequenos gestos eram brancos, puros como a cor do amor.

Faltam-me o fogo e o folego e as palavras hoje. Tudo se confundiu quando os nossos corpos se encontraram na beirada do rio. Lembras? E as minhas mãos te tocaram a pele das costas, os seios e os lábios sôfregos se colaram num amplexo novo de excitações e calafrios electrizantes.
Eras uma espécie de perola, sim, tens razão, uma espécie de perola rara que profanei, espécie de templo secreto na margem do rio ao sul de nós. Perdemos a inocência pura e o amor deixou de ser branco e tingiu-se de cores rubras. Nesse dia choveu, e vimos um arco iris a rasgar o céu e fomos á procura do pote de ouro que estava escondido debaixo da outra ponta do arco.

Perdemo-nos os dois na floresta. Crescemos. Partimos. Dou-me conta que foi a ambição do ouro que nos perdeu. Tu eras o metal puro á distância da ponta dos meus dedos. Tu eras o tesouro escondido que sempre estiveste á vista, e eu cego não sabia ver-te até ao dia em que deixamos a inocência desaguar no mar. Ai era demasiado tarde. O nosso olhar confundiu-se e o rubor tingiu a tua face e os teus olhos afastavam-se dos meus e os meus dos teus, e eu ao longo da vida nunca mais soube olhar olhos nos olhos com medo de encontrar os teus outra vez.

Nem sei por onde começar.

Os lugares não existem já, destruíram a montanha e agora um risco de alcatrão largo separa as duas partes.

João Marinheiro 
São Paio de Antas Novembro 2013
Fotografia de Barcoantigo em 2013
 

domingo, novembro 03, 2013

da ausência...


Quero dizer-te que a tua falta também me incomoda.

A tua falta também me incomoda porque a sinto.

E as madrugadas são longas agora que se aproxima o equinócio de inverno em nós.

Também te quero dizer para que saibas que gosto de receber cartas. Dou-me conta que não recebo cartas faz anos por não ter um porto de abrigo certo. Um endereço postal, um sítio. Dou-me conta.

É bom escrever. Muito bom escrever, mesmo que seja uma carta a um anjo viajante.

Faz tanto tempo que abandonei a escrita em mim, e é preciso que me empurres para voltar às palavras sentidas.

Tens razão, por vezes na loucura que me assiste ando por ruas sem sentido. Os sentidos são os das emoções do corpo, e esse repousa como o velho barco na praia alquebrado.

Observo de longe, sou um espectador furtuito, de ocasião.

O velho lobo-do-mar arfa aflito, o peito dói, o ar não chega para oxigenar o coração. Doido, um dia deitou o coração ao mar, jogou-o borda fora por ser um coração inútil. A falta que lhe faz esse coração mesmo velho e inútil. O lugar dele era ali, bem dentro do peito, onde confluem todos os caminhos, todas as ruas de emoções. Que importa que sejam de sentido único ou em contra mão. Só se vive uma vez, só estamos no exacto momento no milionésimo de segundo no universo imenso do cosmos, uma única vez. E quando os olhos se encontram acontece um milagre, se é que existem milagres, ou se expliquem. O coração desacerta-se arrítmico, e todas as estradas e caminhos são agora avenidas que terminam numa imensa rotunda onde circulamos de mãos dadas em sentido contrário. Os olhos aninham-se uns nos outros e o momento é único. No céu um traço de luz rasga a noite, uma estrela cadente, um desejo, um segredo. Uma jura de amor. Para sempre!

Observo a transformação operada. Cismo. Para sempre é demasiado tempo…

Todos os anjos viajam, para isso tem asas alvas de brancura e brisas leves em nuances perfumadas que deixam rastos, traços de luz, ardência no mar nos dias de lua.

Por vezes eu próprio não sei se serão anjos ou ninfas ou sereias no meio do mar alto, a imensidão húmida que se entranha na pele. Por vezes imagino o toque da pele e a medo estendo os dedos até ao teu contacto breve, electrizante. Então no universo paralelo, imaginário, desabam os trovões e os raios de luz caem dos céus plúmbeos mergulhando no mar e centenas de miríades de pequenos flocos de luz tingem o mar em prata e ouro. As sereias de longos cabelos entoam cânticos enquanto os golfinhos volteiam em acrobacias fantásticas de alegria e suprema sabedoria.

Sente-se no ar e na brisa o aroma dos sargaços, o cheiro do sal, a humidade do mar cola-se na pele como uma segunda pele e o corpo arrefece. O tempo avança monótono e certo na ampulheta, grão a grão, em voltas e reviravoltas.

Por vezes eu próprio não sei do tempo deveria saber, deveria saber olhar o tempo como se olha o horizonte a descortinar uma vela. O mar já não tem velas, é por isso que perdi a noção do tempo. Abandonei os barcos. Foi isso.

Nunca me perdoaste. Abandonei os barcos e abandonei a luta pela sobrevivência dos pequenos e frágeis barcos tradicionais…

Observo o tempo agora a reencontrar o saber e chove.

Pequenas gotas frias que percorrem a vidraça em sentido descendente até formarem lagos confinados ao chão. Parecem rios. Parecem lágrimas e os teus olhos surgem com estrondo por dentro dos meus alagados.

Não quero que chores, as tuas lágrimas são preciosas perolas e eu não mereço perolas. A dor que sinto é uma dor antiga, portanto não me incomoda já, coabita em mim. Não quero que chores a minha ausência, porque um dia volto, cíclico como as estações do ano ou o ciclo das marés.

Preciso de me reconstruir como se reconstrói um barco. Tabua a tabua no lugar certo. Calafetar o coração com estopa e breu, tapar todas as juntas. Vistoriar o casco, as obras vivas e as obras mortas. O velame. O poleame. Levantar ferro, armar pano, afeiçoar ao vento depois deixar ir, navegar rumo ao alto mar num bordo espaçado e longo, preparar o regresso.

Sei o caminho de volta, todos os velhos lobos-do-mar, tem as estradas e os caminhos escritos nas estrelas, as marcas, as conhecenças a terra numa derrota estimada numa navegação á vista. Todos os lobos-do-mar sabem o norte e a declinação magnética. Os azimutes na carta, os rumos, os desvios da agulha, a altura do sol, os sinais, o voo das aves. Só os mascatos voam, voam, voam, milhares de milhas sem regressarem a terra, só eles nos confundem, porque às vezes nos parecem anjos, só as asas são de cor alterada, mas á distância de terra é só um pormenor pequeno.

Só os teus olhos são as luzes do farol que nos guia na noite, os viajantes do mar. Se os apagas como encontro as marcas do enfiamento á barra para regressar ao meu porto de abrigo em segurança?

João Marinheiro

São Paio de Antas Novembro de 2013.
Fotografia de Barcoantigo em 2013

sexta-feira, março 29, 2013

insónia...


 
Não sei quantos dos dias ainda serão de chuva,
Não me importo que seja uma primavera adiada
As flores se atrasem a desabrochar
As noites são longas em mim
Não consigo vencer a falta de sono o desassossego interior
 
Por vezes dormes ao meu lado
Por vezes desenho-te de memória na cama
E percorro as tuas costas com beijos ternos
Por vezes acordas e dás-me um abraço apertadinho
Ficamos aninhados um no outro
Adormeço por fim…
 
Mas tudo é irrealidade em mim
Tu, a tua silhueta, a tua pele
As formas do teu corpo despido
Os cabelos na almofada desalinhados
As tuas mãos abertas...
 
 
E os beijos
São como gotas da chuva que escorre na vidraça fria
Não passam de criações do cérebro cansado
O desassossego interior
O livro aberto sobre a cama
A falta de sono…
 
 
 
 
João marinheiro Ineditos 2013
 
Fotografia de António Mizael www.olhares.com

sexta-feira, março 22, 2013

no dia de hoje...


Estou por aqui fazendo tempo…
Perguntas: como se faz o tempo?
Esperando. Respondo distraído
Esperando…
Perguntas-me onde moro
Respondi-te.
Dizes que agora não pertenço a viana
Pertenço a Braga
Sim
Sempre pertenci a Braga
E agora voltei
Finalmente como os velhos barcos de regresso ao porto que o viu partir
Tive sorte
Regressei
Quem sabe para morrer na praia de seixos e ventos que um dia povoaram a minha infância…
 João Marinheiro
Ineditos 2013, São Paio de Antas
Fotografia de Barcoantigo 2012

quarta-feira, março 13, 2013

murmurios...


Desacertas-me
Desconcertas-me
Apaixonas-me
E isso é que é complicado...
João Marinheiro 2013
Fotografia da Net

terça-feira, fevereiro 26, 2013

És uma especie de som uma brisa...



um som envolvente
um sopro
uma brisa
um desejo

anoitecer nos teus olhos...

sábado, janeiro 19, 2013

Nós somos impossíveis e no entanto estamos aqui...


 

Às vezes, penso que é impossível que entendas completamente aquilo que sinto”…

E esta frase anda de roda de mim, bailando devagarinho, rodopiando, insinuando.

Às vezes paro para a observar. Fico a olhar. Quer dizer. Finjo que não olho para que ela não se aperceba da importância em mim. Às vezes para mim, é impossível eu entender o que sinto. E ela anda de roda, volteia como uma pena que eu em miúdo atirava ao ar para ver cair rodopiando, uma e outra vez até ficar cansado. Estou exausto dou-me conta. A culpa não é tua. A culpa é só minha. E agora releio as palavras que me ofereceste, e demorei a responder porque preciso de as assimilar em mim, porque como tu, eu também não tenho palavras, e deveria ter, porque sou um homem de palavras. Era um homem de palavras…

Tu tens o dom de me tirar as palavras do pensamento e ele fica ocupado pela tua presença. Repara o importante que és em mim. A tua grandeza em mim. E eu sinto-me casa vez mais pequeno, a definhar nas palavras que já não sei dizer, porque se acabaram. És tu que ocupas o pensamento. Sei perfeitamente que és um beco sem saída uma rua de sentido único. Tenho de rever todo o código que aprendi faz muitos anos atrás. Não quero ser apanhado em contra mão. Quero só a tua mão na minha que é algo de completamente diferente e único. A culpa não é tua. Como diz o texto que me ofereceste, não existe culpa. Existimos nós, e quando existimos nós, tudo o resto é acessório, portanto dispensável. A mesa do café, o empregado que nos serve os cafés e os outros pequenos pecados. Tudo pode ser dispensado. É como se não existissem. Fica só porque eu não me importo e tu também não, o pequeno pardal novito que se aquece ao sol em cima do muro, e do qual te chamei a atenção. Ele pode ficar connosco porque também é puro.

Acredito que partilhamos palavras. Essencialmente palavras. As palavras que gostamos. As palavras que eu não sei e tu me ofereces, para que eu fique assim, demorado na resposta. Acho que fazes de propósito para que eu me revele. Não me importo, posso é demorar a resposta. Porque tem como todas as palavras que te digo de ser uma resposta sentida, vinda de dentro, e não apanhada num qualquer sítio, num qualquer livro.

O José Peixoto sabe dizer palavras porque as sente como eu, ou eu como ele. Ficam-me cá dentro como uma imagem projectada em ecrã plano as suas palavras que encerram e libertam tudo...” E podemos dizer essa palavra dentro de um beijo”...

Um beijo diz tanto. Um beijo diz tudo! Nós nunca dissemos tudo um ao outro. Na maioria das vezes, eu também te falo de memória, toco-te de memória, quero-te de memória, porque tu nunca estás, está a tua presença em mim. E todas as palavras não chegam para me dizerem o que sinto e não revelo. E tu insistes para que a revelação aconteça…

 E tu não tens culpa de nada, e eu não tenho culpa de nada. Acho que escolheste o texto correcto, exacto, frio. Que talha a golpes de navalha em nós o sentir. Que dilacera aos poucos. Por isso te disse que ficamos diferentes. Eu fico diferente, menos ousado, mais fechado em mim. A tal carapaça instituída. Socorro-me de novo das suas palavras:

 …” Nós somos impossíveis e, no entanto, no entanto, no entanto, estamos aqui…”

Nem sei porque não encontro palavras minhas, mas as do José Peixoto já dizem tudo, as minhas não diriam tanto, e eu quero que digam muito. Não existe culpa. As minhas palavras é que não são perfeitas. Por isso compro e leio muitos livros, destes escritores que agora aprenderam a escrever as palavras perfeitas, que dizem tudo em poucas palavras. Eu não sou assim. Acho que digo demasiadas palavras. Que ando com rodeios, volteando, rodopiando. Exactamente igual. Como o efeito da tal frase no início das palavras que te escrevo. Também ando às voltas…Um dia paro de dar voltas e das duas uma, ou desisto. Ou o tal passe de mágica acontece.

Ganho-te aos pontos numa coisa, ao contrário do José Peixoto sou eu que te ganho ao falar de mar, porque indiscutivelmente sei mais de mar que tu. Eu, é que sou o João marinheiro. Mas não me importo, ensino-te a saberes de mar e tu ensinas-me a saber de palavras.

Por falar em palavras, recordo o início das nossas breves conversas, como gostava de ler um livro na tua companhia. O sítio. Porque para se ler um livro é preciso um sítio. O sítio. Sei de memória onde será. Na casa de chá, sobre os rochedos com a lápide em mármore e as frases do António Nobre gravadas nas pedras em frente. Já não recordo o que diziam, mas irei rever, assim como o mar da larga janela, e tem que ser num dia de Inverno ou de Outono com chuva e vagas de espuma branca. O livro escolhes tu. Porque tu é que sabes as verdadeiras palavras que me trazes a conhecer. Confio em ti na escolha.

E continuamos a não ter culpa de nada. Cada vez nos desencontramos mais. Rareamos a escrita. Deixamos de ter tempo para nós. Dedicamos o tempo aos outros, e, no final estamos demasiado cansados para nós. Mas nós é que somos verdadeiramente importantes. Demasiado importantes. Tu para mim és! E um dia sem ti, é um dia triste. E não gosto dos dias tristes. Gosto de ti. O que revelo mesmo sem querer. Mas dei-me conta, estou na tal rua sem saída. E agora que já sabes, faz o favor de me fazer feliz com a tua presença, porque sou feliz com pouco. Assim fui habituado de pequenino e não é agora com esta idade que irei mudar e querer muito. Acho que muito é demasiado e o que é demais estraga-se, ou tem tendência a deteriorar-se.

E corro sempre o risco de usar as palavras dele que me trouxeste para ler, e que motivam esta nova carta, para te falar de mim ou de nós, porque a carte tem remetente e destinatário, e toda ela se destina a ti, mesmo que fique sem resposta. Já te disse que me contento com pouco. E saber que a recebes já me faz feliz. Agora se me quiseres mais feliz ainda, responde. É que eu já escrevi muitas cartas sem resposta. Acho, fico na duvida, se o destinatário existiu alguma vez, ou se tudo não passa de imaginação minha.

Tenho uma imaginação atribulada e se eu te contar o que imagino, não sei se me respondes, ou te enfadas comigo, ou se me compreendes. Mas estou habituado a só eu próprio me compreender. Quer dizer, eu tento. Na maioria das vezes desisto por ser missão impossível. Mas não é impossível tu responderes a esta carta que demorou a ser escrita a ti. Para ti. Dedicada a ti. E não te chamas Margarida, porque as Margaridas são outras, e tu és Cláudia e esta carta é para ti.

Agora vou, e vou com as tais palavras que me trouxestes a fazerem um bailado no meu pensamento, enquanto escuto a música da Teresa que pergunta: …”Onde é que está o meu amor… Onde é que está o meu amor…o meu amor onde é que foi…”.

E vou com um sorriso nos lábios. Aprendo cada dia devagarinho.

 

Excerto de,  Cartas a Cláudia VI 2006
 
João Marinheiro

Fotografia de Barcoantigo em 2008